1 de fevereiro de 2013

A PASSEIO


Walking House , 1994  by Laurie Simmons  Photograph
Uma decisão vespertina, de repente. Sentia-me prisioneira do meu próprio quarto em seus ares condicionados, então elaborei uma fuga às três horas da tarde com destino a um hospital. Tinha de pedir autorização para fazer um ecocardiograma transesofágico. Resolvi ir caminhando, já que era próximo de casa. Sol a pino seria cliché demais para definir a brutalidade do calor que fazia, prefiro dizer que estava um sol de estraçalhar com os pinos da gente feito uma ígnea bola de boliche. Vestia um short jeans, uma blusa clara de botões, sandália e óculos escuros para não derreter as lentes de contato. Na bolsa coloquei toda a papelada necessária, documentos, chaves, batom, caneta, chicletes, dinheiro, aparelho celular e um livro. Cumprimentei o porteiro, que me respondeu abrindo a porta mecanicamente. Segui ziguezagueando entre ruas até chegar à linha reta que me levaria ao destino certo, caçava sombras e calçadas regulares. Casas antigas com suas pinturas bonitas me chamavam a atenção, remanescentes de uma Fortaleza pacata em um bairro tipicamente residencial. A sensação nostálgica era logo quebrada com o barulho das oficinas de automóvel, pelos berros vindos de algum estabelecimento comercial. Uma mulher morena com porte robusto parecia descansar o almoço em uma cadeira branca de plástico, com fones no ouvido, vendo o movimento dos carros. Cogitei dar-lhe "boa tarde", mas não o fiz, desmotivada com a educação da maioria das pessoas daqui, aliás, com a falta dela. Do outro lado, um homem era todo sorrisos, mas percebi que a intenção poderia ser outra e não correspondi, resguardando-me em minha sisudez inofensiva. Passei por um posto de gasolina com beberrões conversando alto e ouvindo uma música mais alta ainda, a vibração, por sinal, era baixíssima. Na verdade, era uma bateria repetitiva, com grunhidos insuportáveis emitidos por um suposto cantor, em minha análise simplificada das características do forró atual. Sinal fechou, atravessei a faixa de pedestres de uma das avenidas mais movimentadas e logo pude vislumbrar a altivez do prédio verde no qual entraria.

Fiquei maravilhada com as árvores lá dentro, com a forte brisa proporcionada da qual tanto necessitava em refrescância. As palmeiras pareciam me dar as boas-vindas. Procurei pela recepção geral e logo perguntei à atendente se ela poderia me conseguir uma pré-senha, entregando a requisição do meu exame com a carteira do plano de saúde anexada. Pedi algumas informações, enquanto a moça me respondia monossilábica. Era bonita, jovem, mas tinha olheiras profundas. De tão mal-tratada, parecia não ter dormido direito por várias noites. Observava suas mãos ao digitar meus dados no computador, usava um tom azul-pálido nas unhas compridas, mas uma delas, a do dedo anelar, faltou ser esmaltada. Senti tanta pena que quase pergunto se ela precisava de ajuda. Ao mesmo tempo, achei uma negligência permitirem que pessoas como esta, sem vitalidade no rosto, atendessem a pacientes. As pessoas já chegam ali doentes, mereciam minimamente um sorriso nos lábios com um olhar receptivo. Ao redor, muitos senhores e senhoras, alguns rapazes enfadados, todos à espera de uma boa notícia. Resolvida minha situação com os papéis, sem muita coisa para fazer, fui caminhar pelo jardim. O vento me lufou uma sensação agradabilíssima, sentei-me num banco e retornei o telefonema de um amigo. Um velhinho sentou-se do meu lado. Geralmente, fico acanhada de falar ao telefone com alguém por perto, mas foi tudo bem rápido. Desliguei e abri sobre as pernas o meu romance a fim de ler alguns capítulos, por mais que uma voz interior tenha me pedido para puxar conversa com aquele senhor pacato. Enquanto lia, meus olhares de esguelha denunciavam um cochilo do vovô, que recostou sua coluna débil, porém de forma ereta, numa espécie de meditação com os braços cruzados. 

Dei mais umas voltas por ali, observei médicos em seus jalecos de branco impecável transitanto entre suas emergências, enfermeiras em seus uniformes esverdeados auxiliando casos, tudo muito calmo. Aquele ambiente não me fez sentir o cheiro da morte pela primeira vez, do contrário, trouxe-me bastante tranquilidade. Passados bons minutos, refiz o meu trajeto. O olhar inverteu-se para uma mudança de foco a novos coloridos. Trânsito em alvoroço, obedeci aos sinais novamente. Avistei  trabalhadores acimentando um muro alto e tive leve vertigem. Uma loja de usados exibia geladeiras enferrujadas na porta. O calor parecia aumentar baforando das paredes. Naquele momento, um cachorro manco meio mestiço entre Pitbull e vira-lata vinha na minha direção, por alguns segundos, fez-me pensar em mudar de calçada, mas confiei no ritmo dos meus passos. Respirei fundo. Ele passou. Olhei para trás e senti compaixão por aquela pata arrastada, porém demonstrava força tremenda, talvez por já estar acostumado com a tamanha urbanidade casca-grossa imposta para ele. Eu estava quase chegando em casa, quando desacelerei e optei por entrar num café. Pedi chá mate gelado, brownies, degustando mais do meu livrinho companheiro. Estava feliz, sentada em uma linda mesinha cercada por um gramado, de frente para um céu azul, adornado por fios de alta-tensão onde pousavam pardais sem pressa, entre varandas de apartamentos. Minhas preocupações estavam sendo sugadas a cada vez que chupava aquela bebida fresca por um canudo e contemplava as paisagens novas de sempre. Suspirei aliviada, paguei a conta e parti.

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