29 de junho de 2011

Reciclada

Antigamente, era guiada por passos de vira-latas. O preto rasgado das noites, os uivos em bafos de lixo. Olhos vermelhos de uma lágrima ácida. Caminhadas perdidas. Agora, gosto de não me sentir, porque não sou, sacola plástica ao relento. Releio a vida. Sou sustentável quando embalada pela canção dos sentimentos, em especial, dos que me impelem a paixões menos dilacerantes, menos armadas, como a de me perceber acolhida no abraço de uma querida visita inesperada e o perfume então se instalar na roupa feito lembrança de um futuro limpo. Com lavanda nos lençóis aquecidos, com nova vista da varanda. Por hora, cada cor está sendo bem vivida.

20 de junho de 2011

VERACIDADES TORTAS

Seria no mínimo nojento eu se registrasse todo o meu torpor após um grande alívio fisiológico. Dei duas descargas e pensei por uns minutos na vida, assim, com maior lucidez. Estou calma e com a mente fluida, pensando em quão nonsense é a realidade, em quão dura pode ser a vida. Tipo aquela mãe escolhendo atenta cartelas de loteria por meio da numeração que ela supõe ser a válida, uma confiança em certos números que, segundo suas crenças aleatórias, poderão trazer mais sorte. Aquela que acredita piamente, mas não ganhou nada até agora. Ao menos é uma distração, coitada. Quem sabe quando ela achar uma cartela despretensiosamente, sem escolher tanto, ganhe algum prêmio em dinheiro e nem saiba, por não ter conferido o jogo a tempo, por essa mesma distração envenenada. Talvez se as pessoas parassem de pensar um pouco no dinheiro, a fortuna viesse mais fácil. Os acontecimentos pregam peças na gente quando se quer ser mártir, um Jesus amargo pregado na cruz olhando pra humanidade e dando graças a Deus por não fazer mais parte dela. Eu até poderia dar conselhos, mas há cabeças tão duras quanto a realidade delas. E elas as supõem diamantes sem ao menos polir os carvões. Quando não se desmancham, incendeiam por bobagens. É por isso. A dureza é impressionante. Vejam os velhos ricos, não são duros no bolso, claro, mas nem levantam mais. Levantar o quê? Ora, o seu Jesus crucificado pela idade, mais perto do céu. Erguem-se só as almas ali. Doa-se, às vezes, à caridade institucional cheia de moribundos e de esperanças antes de morrer. Com o tempo, a vida vai ficando flácida. O juízo se acomoda a uma poltrona, toma doses cavalares de enlatados televisivos ao chegar do trabalho cansado. Nos finais de semana há o descanso. 

Quando não há mais trabalho e o descanso é todo dia, inventam-se novos pretextos para se manter ocupado. Conversar, amar, beber, dormir, rezar, tudo vira ficção na tentativa de saciar nossas volições insaciáveis. Pelo menos, por algumas horas. Geralmente as que ficam para tia precisam de romances água com açúcar. Viver é aprender a oscilar feito música. É a coisa mais sadia quando faz sentido e bate continência a uma rotina de ações menos mecanicistas, com disposição de soldado para o imprevisível que nos comanda por dentro. Porque não se sabe do amanhã direito, só indiretamente. A procura pela felicidade é o que nos mantém atentos e ricos, pois todo mundo já garimpou umas alegrias em períodos de bonança. Planeja-se e mesmo assim se pode ser surpreendido. Dá raiva, mas é aí onde está a graça. Por exemplo, antes de escrever isto eu estava na privada, reflexiva em tom impressionista, O Pensador de Renoir despejando uma cólica que pensei ter se diluído cano adentro. Agora ela está voltando, o que significa que não estou totalmente limpa. O organismo ainda quer por o lado ruim para fora. E isso é tão humano feito quem registra seus peidos como sopros de vida em um blog. Não é assim? A gente diz: "já passou, eram só gases".

15 de junho de 2011

Os Thibault


Não sou como a abelha saqueadora que vai sugar o mel de uma flor, e depois de outra flor. Sou como o negro escaravelho que se enclausura no seio de uma única rosa e vive nela até que ela feche as pétalas sobre ele; e abafado neste aperto supremo, morre entre os braços da flor que elegeu.

Roger Martin Du Gard

10 de junho de 2011

O depois é sempre nunca

"Dá-se atenção àquilo que apraz".
Disse o tempo fugaz à ânsia ignorada.


Porque quando sobram-se as horas,
Elas se doam para outros agoras.

6 de junho de 2011

Flanando

Deixa eu sair da carga pesada. Deixa meus ombros leves só de carregar pluma, pedra nenhuma. Deixa a minha asa, não rasga, deixa ela. A chuva pode molhá-la, sim, eu deixo. Deixo pesar o que é da natureza. O fardo não vindo dela é quase sempre alvoroço, não me cabe, não me serve, roupa de pele só aceito a do meu bicho interior. Rasgada, sem aperto. Logo eu que sou quase humana. Atentar para a leveza me rege e guarda. Não me venha com teu sobrepeso! Teu sol vermelho me encheu de sardas à costa do mar, que é larga. Minha onda não é de todo revoltada. Nada no ar, nada não, eu trouxe a boia.