30 de janeiro de 2013

NOVE VIDAS

 

Já faz uma semana que me sinto meio morta por dentro, sete dias como as sete vidas gastas de um gato brasileiro. Sim, porque os gatos dos países de língua inglesa têm nove vidas, são mais privilegiados até nisso. Esses números têm um significado místico especial em diversas culturas e religiões. Na Cabala, por exemplo, o 7 é um dos algarismos de maior potência mágica, enquanto o 9 representa a existência e a abundância. Descobri a lenda ao ouvir o disco "Nine Lives", do Aerosmith, lançado em 1997, que, não por acaso, escuto nesse instante. A primeira capa foi banida do mercado porque o designer extraiu a gravura de um livro Hare Krishna, substituindo a cabeça de uma deusa por a de um felino. Os membros dessa zen sociedade se sentiram ofendidos e, então, a banda teve de mudar a concepção visual do álbum.

Morri por diversas vezes, reconstituindo-me a cada porvir feito pantera negra, muito embora na maioria delas ainda me sinta uma gatinha branca com o focinho sujo de leite, rasgando-me em miados finos por alguma dessas brincadeiras de péssimo gosto que me fazem quando me jogam para cima até estatelar no chão ou quando me rodam pelo rabo até vomitar minhas vísceras junto a bolas de pelo. Um desses desencárnios abruptos se deu no domingo, com o telefonema de uma de minhas melhores amigas (senão a melhor, em razão de nunca termos perdido contato e nos conhecermos no colégio desde a sétima série, sendo mais precisa, há mais ou menos 15 anos). Tatiane havia sofrido um acidente de moto! Sosseguei quando nas redes sociais ela havia postado uma mensagem tranquilizando os amigos de que estava bem, porém ter ouvido da voz dessa querida minha, tão triste, que estava com as pernas paralizadas, deixou-me estarrecida. As pessoas têm se contentado com as postagens dos conhecidos e desconhecidos via Facebook como se fossem incontestavelmente verdadeiras, mas há tantas vírgulas, timbres e cores diferentes na realidade, que só se dão conta depois que procuram ouvir o outro acima de seus egos embaraçados, além de suas certezas. Eu me incluo nisso, tanto que esta noite desativei minha conta para sentir na pele a necessidade ou não de contar com certas criaturas, digo, com as criaturas certas, que lhe conhecem de fato, têm seu número e seus olhos nos olhos delas. Em poucas horas, recebi alguns Emails preocupados com o meu suposto desaparecimento, aí sim comecei a achar tudo muito estranho, inclusive meu próprio comportamento. Ao menos por um tempo pretendo manter minha curiosidade jornalística focada apenas nos livros, jornais, vídeos e suportes afins. Assim, produzo mais e observo o mundo através de "Windows 7 lives".

O porquê de eu ter associado minha amiga acidentada ao disco de Steven Tyler e sua gatarrada é bem simples: ela cultivava um amor platônico lindíssimo por este cara da boca grande. Nossas figurinhas trocadas eram sobre basicamente três coisas: besteirol, rock and roll e amores adolescentes, hoje em dia conversamos sobre quase o mesmo, com o adicional da família e dos relacionamentos estabelecidos. Na época, aos 14 anos, a cada semana variava minha admiração ninfeta entre todos os integrantes do U2, Phil Collins, Renato Russo (dentre os rockers); Mel Gibson, Nicolas Cage e Bruce Willis (dentre os astros de Hollywood) - por este último, canastrão dos filmes de ação, dividíamos os suspiros. Taty, para mim, parecia a mais amadurecida da turma, apaziguadora de intrigas, discreta e bastante estudiosa, só um tanto séria algumas vezes, seriedade esta quebrada por possuir as pernas mais bonitas da classe. Eu sempre fui a tímida que todos conheciam por causa das respostas excêntricas em sala de aula, das redações bem-feitas, desenhos e músicas que gostava. Tempo bom, nossa única preocupação era passar de ano e nos descobrir enquanto jovens fortalezenses de classe média que éramos. Considero com orgulho que pertenço a uma geração ainda mais promissora que a de hoje, intelectualmente falando, apesar de sempre encontrarmos as tribos e as figuras típicas, tais: a mãe precoce, o usuário de drogas e a vítima de bullying. Atualmente, submersos em seus tablets, cabelos coloridos e criatividade reduzida, fragmentaram a identidade. Antigamente, quem era gótico ou punk, por exemplo, sabia definir direitinho suas predileções. O acesso facilitado a tantas informações, certamente, fez essas mentalidades descartáveis entrarem em colapso. Que nada, estão todos felizes!

Já minha amiga tornou-se uma farmacêutica de mão cheia, workaholic até nos finais de semana, imersa com devoção em suas pesquisas na área da saúde, ansiando sua pós-graduação conciliada com um melhor emprego. Pouco antes do ocorrido, havia se matriculado em uma academia de dança do ventre, para a qual me convidou a assistir uma aula sem compromisso qualquer dia desses. Infelizmente, enquanto Taty não se recuperar do baque, nem poderemos dançar juntas. Eu sinto tanto, sinto mais por ter escutado sua versão tendo como cenário o trânsito nada educado do povo cearense. O namorado foi buscá-la no trabalho, como fazia todas as noites em sua moto, quando um carro de porte robusto, com placa do Distrito Federal, avançou o sinal, derrubando-os no chão com força bruta. Minha amiga caiu com todo o peso do corpo sobre os joelhos, prometendo ali mesmo, como que prostrada diante do Pai, nunca mais subir em uma motocicleta. Rompeu os ligamentos, que estão "tão frouxos quanto elástico de calcinha quando morre", segundo ela. As rótulas pareciam boiar dentro das articulações infiltradas. Ela se consternava também com o fato de ter voltado a trabalhar recentemente, mas sempre com a ajuda de uma tia, oferecendo transporte. Sentada,  todos os dias suportados atrás de um balcão de farmácia, dependente de alguma boa alma que a carregue. Qualdo volta para casa, sem poder caminhar, irrita-se, mas contém-se de algum jeito, buscando forças para resolver o processo judicial envolvendo o sujeitinho causador de seu infortúnio, enquanto visita outros médicos especialistas que possam aliviar sua dor. Vou visitá-la também, como um lenitivo.

Tatiane é forte demais e vai superar essa situação em breve, tenho fé que sim, disse para ela confiar. Se eu estivesse em sua posição, provavelmente nem resistisse, haja vista ter descoberto recentemente um aneurisma entre o esôfago e o coração e já vislumbrar minha passagem. Rezo para que esta seja só de ida, ao menos, para Irlanda futuramente, encaminhada pela minha especialização em tradução na UECE. Ainda sou movida a esperanças, mesmo que combalida. Oremos. Despretensiosamente, gostaria de fazer uma alteração neste versículo da Bíblia: "Cairão mil ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido (Salmos 91:7)", apenas por acreditar que esteja fora do nosso contexo, por pura coexistência com meus queridos, penso que fica melhor assim: Erguer-se-ão mil ao teu lado e dez mil à tua direita; tu serás solenemente soerguido. Amém.

Nenhum comentário: