30 de novembro de 2009

Aniverso

Certo dia resolvi trepar num trapézio chamado vida e caí aqui nesse planeta de trapaças. Nenhuma habilidade com asas, criei braços e pernas a fim de reconstruir o inacabado. Foi em dezesseis de fevereiro, manhã de carnaval, que nasci blasfeminina de pronto: na intervenção cirúrgica de um parto anormal.

20 de novembro de 2009

A disciplina do amor

Quando mocinhas, elas podiam escrever seus pensamento e estados d'alma (em prosa e em verso) nos diários de capa acetinada com vagas pinturas representando flores ou pombinhos brancos levando um coração no bico. Nos diários mais simples, cromos coloridos de cestinhos floridos ou crianças abraçadas a um cachorro. Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer em guardar segredos, que segredo de uma mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o recurso do cadernão do dia-a-dia, onde, de mistura com os gastos da casa cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousavam escrever alguma lembrança ou confissão que se juntava na linha adiante com o preço do pó de café e da cebola.
Lygia Fagundes Telles

17 de novembro de 2009

EnSoularada

Não tenho vergonha do rastro do meu sangue deixado na cama. Sentei-me no colchão a pensar, deslizando o fundo do corpo pelo lençol azul-pálido. Pintei meu céu nas cores crepusculares a fim de que meu dia anoitecesse mais rápido. É, aprecio as luas e todas as suas tempestades ocultas, e ver o sol feito raio, rabo de cometa a brincar de roubar nuvens tamanhas. Por minhas crateras entra uma vida luminosa que menstrua.

7 de novembro de 2009

Noiteza

O escuro me revela o quanto posso dormir sem estar desacordada. O acordo foi feito entre as cortinas e a janela. Basta fechar os olhos então e fingir que respiro, a certificar anjo da guarda que não estou morta. Já teve vezes em que eu queria vagar com meu espírito além das oito horas definidas pelo sono. Surge um pretume onde não deveria estar: na cabeça colorida de meu sonhatório original. Daí, levanto numa espécie de sem-querer-chegar. O corpo sua, afundado na piscina da memória. Colchão retalhado pela presença invisível dos ácaros. Essa realidade desmotiva fácil feito canção de ninar sobre vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Só quem pode apagar meu arco-íris é o tédio. TÉDIO tem remédio? Nem estou doente, mas dai-me um pote de ouro! Ao TÉDIO dedico ódio. Assim, brotam-me as maldades. Se eu pudesse matar, mataria aos montes, detrás dos montes, para ser vista pelo plexo solar. Porém, meu instinto é liberado da cadeia ao criar. PANACÉIA.