Um oco fundo resvalando a alma
Uma sutura com a linha apodrecida por esquecimento
Um cabelo raspado pelo câncer
Uma lágrima sobressaltada feito veia no rosto
Um cristo empapuçado de sangue
Uma escopeta enfiada na cabeça de um pai de família
Um urubu esfomeado por sua carcaça
Uma dor seca que não quer descer a garganta
Um prato arremessado na cara do mendigo
Uma guerra atômica dentro do estômago
Um travesti espancado na rua até a morte
Uma menina com birra a decapitar sua boneca
Um psicopata metralhando o semestre letivo
Uma cadeira elétrica sem máscara para o condenado
Um olho saltando da caixa
Uma coleção de baratas dentro da gaveta das facas
Um foco perdido no segredo do abismo
Uma estrela de seis pontas a rodar sem mapa astral
Um equilibrista bêbado a mirar arco e flecha na maçã
Uma testa atingida bem no alvo
Um solavanco no abdome do filho que não veio
Uma mulher abandonada pelo sistema
Um bebê aborto a bordo nos braços do timoneiro
Uma tropa de soldados falópio a tocar trombetas
Um poema impronunciável pelo papa
Uma fogueira alimentada por bruxas medievais
Um templo que aliena crédulos sem tantos princípios
Uma biblioteca fechada por séculos
Um medo de se ser o que é pelo julgo da unanimidade
Uma selva de pedradas na cara lisa do pastor é mérito
Um dromedário a dar coices no deserto
Uma farmácia a traficar novos vícios sem cura
Um arbusto de ervas daninhas em cada esquina
Uma bolsa roubada na frente da polícia
Um mundo intragável cheirando a fumo
Uma carne intransponível sem que arda
Um avanço na tecnologia de ponta cabeça
Uma pútrida pátria a se refestelar com o dinheiro público
Um índio sem oca, um saci tetraplégico
Uma televisão sem o botão Desliga
Um órfão de amigos
Uma mente lobotomizada pela existência
Um caco de vidro por dia na sola do pé
Uma ré no atropelado
Um amor sem fé