Nunca me contentei com pouco, por acreditar que muito eu ainda mereça, mas talvez eu não tenha feito o suficiente para merecer tanto. Paciência, o que me pertence já está guardado, quando não houver espera alguma, chegará, talvez embrulhado numa caixa de sapatos ou será o próprio salto que terei de dar a abrir meus próprios caminhos: presentes-surpresa são sempre os melhores! Por ora, enquanto posso, desvencilho-me das obrigações cotidianas com lampejos poéticos. Tirei esta tarde para concluir a leitura de Comer, Rezar e Amar no parque, 342 páginas de angústia, desejo, viagens, descobertas infindas sobre seres humanos e transcendência muito bem degustadas. Eis uma das razões pelas quais estou tão conectada ao meu íntimo, religiosamente. Nada de água com açúcar, tem muito fel é fé ali a serem processados pelo organismo de quem se leu, identificada. Desabei a chorar em tantos momentos como se tivesse violado o meu próprio diário guardado dentro de mim e de tantas amigas e amigos que se sentem ou se sentiram ou ainda se sentirão assim, pretendendo marcar um encontro consigo mesmos.
Pisei as folhas das árvores, a caminhar por alamedas antes do sol se por, buscando por um cantinho só meu. Sentei-me sobre um longo banco de alvenaria em frente a um anfiteatro, próximo a um senhor que parecia debruçar-se sobre uma bíblia de capa dura, das grandes e com pinceladas douradas na parte de dentro. Centrei-me por poucos minutos na posição de lótus mal-feita, fechando os olhos para absorver melhor os sons do ambiente: pássaros cantavam em seus idiomas diversos, o vento balançava galhos, crianças gritavam fino, passos de caminhantes, a água a jorrar por debaixo. Logo, senti o incômodo do calor e dos insetos celebrando minha pele, o que me fazia dar tapas no ar para enxotá-los. Já de pálpebras abertas e livro em punho, deitei o corpo na lisa pedra. Descansava a vista entre um capítulo e outro para mirar o céu, azulzinho, quase sem nuvens. Devia ter passado meia hora ali, até que dois garotos começaram a jogar bola sem se importarem com minha reservada presença, além de um carro parado do lado de fora que alteou o volume do som num forró bizarro. Espantalhos! Procurei outro local, irritadiça. Acomodei-me num espaço mais assombreado, recostando-me num pilar quadrado revestido por tijolinhos. Um rastafári também lia, do meu lado, revezando com uma manga que, com gosto, chupava. Duas senhoras que caminhavam a pisadas curtas, em círculos, roubava um tanto da minha atenção. Aqueles meninos futebolistas mudaram a brincadeira e passaram a arremessar graviolas um contra o outro, no esconde-esconde entre as plantas. Pareciam me seguir só para inquietar. Foi então que lancei olhares como quem atira laser contra inimigos em potencial. As formigas me atacavam mais vorazes que antes. Se estivesse de bom-humor, pensaria que isto estava a ocorrer pelo teor da doçura em meu sangue, mas acabei levando para o lado pessoal menos astuto, com a sensação de que até os bichos contra mim estavam. Resolvi fazer uma caminhada.
Gatinhos brancos de olhos azuis entre mestiços, pretos, todos se aglomeravam em torno de uma ração azeda, doada por alguma velhinha de bom coração e pouco asseada. Caules emanavam um cheiro bom de chá, em compensação. Uma mulher com aparelho volteando a coluna fazia seu jogging, obrigatoriamente; um rapaz bonito observava da minha camiseta dos Smiths até as pernas, tentando entender porque eu não usava tênis e carregava um romance na mão; um pai colocava sua loirinha de franja no escorregador com orgulho; compadres conversavam sobre morte e vida, dando espaço para as fofocas saudáveis. E eu captava tudo com minhas antenas predispostas, até tomar o rumo de volta, antes do anoitecer. No portão de saída, avistei uma moça bem debilitada pelo que considerei se tratar de abuso de drogas, pela magreza característica dos usuários do crack. Ela estava folheando uma Bíblia Sagrada de encadernação mais simples que a do senhor mencionado anteriormente. Fui embora dali com a certeza de que todos, de maneira ou outra, buscam o seu norte.
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