29 de outubro de 2010

De repente, desencarnada.

Hoje eu acordei morta. Sim. Reservei mais da metade de um inteiro do dia para delirar na cama. Não, não estou doente. Fiz até um teste: liguei para três pessoas. Sem obter resposta. Então, acho que morri mesmo. Almocei em hora irregular, para variar. A minha rotina é que ela não há. Não sei até que ponto isso é bom ou ruim. Café deixei de tomar. Minha mãe veio bater à porta do quarto oferecer um prato. Aceitei. Mas ela devia estar tão falecida quanto eu, porque eu falava e ela não ouvia. É estranho. Pouco importava nada. Comi. Passarei a tarde narrando o que desvivi, procurando vestígios em respostas, se elas forem dadas. Da noite ainda não sei. Ando cansada de beber só pelo gosto do dia seguinte. Cigarro no palato incomoda. Não, também não sou alcoólatra. É que hoje se faz sexta-feira e a boemia cavalheiresca me puxa a cadeira em mesa de boas conversas quase sempre. Um efeito que podia perdurar era o da tontice afiadora de línguas, desafiadora de mentes. O resto, os vômitos e a dor de cabeça, não me interessam. Estou perdendo a idade para tanta coisa. Virar o dia regurgitando está me enjoando. Sim, estou sendo literal. Só que ao mesmo tempo ter sobriedade me martiriza. Sei lá o que eu quero. Acho que estou vagando. Se eu levitasse, divertido bem seria. Sou um fantasma de carne que se estraga. Vou distante no vôo por hoje. Apenas hoje. O amanhã nem me pertence.

26 de outubro de 2010

Acordar para o lado de dentro. Jogar a chave pela janela. Abrir a pestana ciliada no momento céuto. Almar.

Teimo em cerrar os olhos nas horas mais propensas à luz comuntidiana. Minha iluminação não é corriqueira, exige silêncio e alta madrugada. Cegar-me aos sonhos, enquanto os outros trabalham no calor da realidade, faz meu interior procurar colírio nas gavetas repletas de uma vida mais próspera de claridades. Coloridas e vindas, um dia saberei do meu amanhecer. Sou impontual.

15 de outubro de 2010

Essenciais Reminiscências

Tenho uma vaga lembrança das vagas que perdi. Nos ônibus, à procura de vendedoras japonesas e suas cestas com flores de lótus, além dos rapazes e moças sentadas com seus livros ao colo. Tenho mania de saber o que estão lendo quando pego a condução. Distraio-me com capas, capítulos tremendo nas mãos pela velocidade refreada. Sinto vergonha quando me apercebem vendo. Tento enxergar dentro da miopia de óculos escuros quais linhas me conduzirão ao acaso ainda. 


Nas lotadas filas da lotérica permaneço horas de pé, raramente vou, mais para apostas altas que me enfio no meio dessa gente histérica para a loto fácil da vida. Quem acerta fica podre ou rico, deixam ao menos de ser pobres capachos. Despachos nunca fiz, só simpatias para arrumar namorado na adolescência. Se bem que já tropecei num resto de farofa amarela com galinha, embebedada pela madrugada a fora, cinco anos atrás mais ou menos. Na mesma noitada perdi os óculos na Reitoria da Universidade, a qual invadi para pernoitar com suposto amigo colorido da época. Tanto mudou desde a faculdade. De dois vestibulares que prestei, tendo prestado de fato apenas um, o curso já concluí. Dos concursos que nunca tentei, oscilando a dúvida entre ter o próprio negócio ou fazer mestrado, teço uns freelas-da-mãe revisando, cantando e traduzindo. Academia me impulsiona ao enfado, tanto a de formação intelectual quanto à de ginástica. Professora, eu? Professo um não. Faço bicos, ciscando meu futuro. Por enquanto estou no modo quase, indo feito quasímodo atravessar mais este portão.

Esqueço o que me não aquece o coração. Desamores foram deixados para trás feito crianças (anões disfarçados) acenando para um carro que vai se distanciando mais e mais. Eu sou os pais saindo de férias e nunca mais voltando para a casca. Quero é ar, encher a barriga de vento. Sumi para quem desuniu. Voei aquém. Nem quero saber se também esqueceram de mim. O fato é que meu feto vivia propondo o fim. Hoje percebo que ainda estou só no começo, recém-nascida, criada de ninguém. E mesmo assim me cobro tanto. Por tudo me ardo. Sensível ao absurdo com que as pessoas já se acostumaram. Eu que me propus em casamento, não aceitando direito. A diferença é que, das aquisições recentes, fiquei noiva do sim dito cara a cara com o espelho. O quando do casar ainda espero. Vai demorar juntar todos os meus poros com as minhas terminações nervosas. Boniteza, esperteza e gentileza me falta não, falta é que eu me peça mão para a contradança do mundo. Contradição?

8 de outubro de 2010

Só a Morte Desperta os Nossos Sentimentos

Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. 
É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo. 

É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros! 

Albert Camus, in 'A Queda'